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A violência brasileira e a redução da maioridade penal
15 de junho de 2015
ASCOM CRESS/MA

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Por: Ana Margarida Barbosa Santos[1]
Andrea Carvalho Correia[2]

O artigo 171 do Código Penal Brasileiro qualifica estelionato, uma prática criminosa onde o autor utiliza-se de um artifício para levar vantagem, prejudicando outrem. Esse significado é emblemático porque o número identifica o Projeto de Emenda Constitucional – PEC 171/93 em tramitação no Congresso Nacional e que trata da redução da maioridade penal.

A justificação da proposta apresenta dentre outras razões, a capacidade de entendimento dos sujeitos menores de 18 anos por ocasião do ato praticado e o aumento de ações delituosas cometidas por eles. A opção pela redução é fortalecida ainda pela premissa de que o jovem a partir de 16 anos pode votar e pela imprensa escrita, televisiva e radiodifundida que noticia um caso grave cometido por adolescente de forma incisiva, repetitiva e muitas vezes contaminada pela revolta.

É fato que a violência tem tirado o sono de brasileiros e brasileiras, mas é preciso considerar que essa situação é o resultado de um modelo socieconômico excludente e onde direitos sociais anteriormente conquistados estão caindo por terra. Logo, o seu enfrentamento não se dará com o encarceramento de um segmento populacional que não é o principal  responsável pelo adensamento de situações violentas.

De acordo com dados da Delegacia do Adolescente Infrator – DAI foram registrados de 2008 a 2013 cerca de 2.517 ocorrências de atos cometidos por pessoas entre 12 e 18 anos incompletos,  incluídos nesse total infracções como calúnia, roubo, estupro, tráfico, arrombamento, receptação, etc. Desse quantitativo, 122 registros foram atos contra a vida, como homicídio simples, homicídio qualificado, latrocínio e latrocínio na forma tentada, sendo estes os atos que amplamente divulgados, trazem maior repercussão e comoção social.

Fazendo um comparativo entre esses 122 atos graves cometidos por adolescentes ao longo de 6 anos e os 281 homicídios em São Luís/MA ocorridos no primeiro quadrimestre de 2015 (sitio da Secretaria de Estado de Segurança Pública) como atribuir a escalada da violência à aquele seguimento populacional?

Estudo divulgado neste ano pelo UNICEF aponta que dos adolescentes mortos no Brasil, 36% foram assassinados, sendo que a taxa de homicídios em relação à população em geral é de 4,8%, conforme a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República. A mesma pesquisa revela ainda que em 2013, no município de São Luís, 121 adolescentes e jovens de 12 a 19 anos tiveram morte violenta. E aqui não está a fazer o recorte da etnia/cor e a origem desses jovens.

O debate em torno da redução da maioridade penal, apesar de colocar as pessoas em posições contrárias, levanta contradições que merecem ser consideradas: enquanto somos referência em estratégias de enfrentamento à mortalidade infantil, assumimos a segunda posição no ranking mundial de homicídio de adolescentes. Portanto adolescentes encontram-se na condição de vulnerabilidade e são mais alvos da violência, quer seja esta doméstica, no trânsito, nas instituições, nas ruas do que propriamente são autores dela.

A possibilidade de que o Brasil possa enviar para a penitenciária jovens de 16 anos remete também a uma antiga lei, tão antiga que data de cerca de 1772  a.C.   É o Código de Hamurabi.

Primeiro registro de lei civil e penal de que se tem notícia na história da humanidade, o código, cujas punições eram extremamente severas, trazia a lei de talião, “olho por olho, dente por dente”, como princípio. E na introdução a ideia de “justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo”.

Conhecido pela crueza das penas para seus violadores, o Código de Hamurabi representou um avanço civilizatório. Nele há o início do que hoje se pode chamar de direitos humanos reconhecidos enquanto documento legal. De lá pra cá, muita coisa mudou, inclusive se avançou no entendimento dos “princípios”, abstrações construídas coletivamente e que orientam, fundamentam determinada norma, comportamento, decisão.

Enquanto na Mesopotâmia o principio básico do Código era o talião, hoje temos legislações, como as Constituições Federal, Estadual e as leis Orgânicas, que trazem em sua introdução uma carta de princípios como o respeito à dignidade da pessoa humana. O conceito de dignidade humana é amplo e sua interpretação pode até ser inspirada pela subjetividade de cada um, mas uma coisa é certa, respeito à dignidade significa considerar a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento na qual se encontram os adolescentes.

Uma legislação que considera essa condição já existe, é o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que trata a responsabilização penal juvenil sob a ótica de que a família, a sociedade e o Estado têm compromissos e obrigações de garantir a esse seguimento condições objetivas para que  exercitem sua cidadania e atinjam a maioridade  enquanto sujeitos que possam contribuir para ampliação dos direitos e não se constituam seus  violadores. Isso é mais um grande  um avanço.

Contrários e favoráveis a redução da maioridade penal querem a mesma coisa, segurança,  ou seja condições de andar nas ruas, chegar em casar, ficar nas praças, nas praias, esperar o ônibus, sair das festas a qualquer hora do dia ou da noite sem o medo de ser assaltado, assassinado. Contudo a proposta apontada pela PEC 171/93 é semelhante ao seu significado simbólico: encarceramento de maior de 16 anos e redução da violência, é puro engodo.

Não há notícias de que o rigor com que uma pena é aplicada tenha o poder de inibir o cometimento de outros crimes. Endurecer a punição parece de certa forma, resgatar a “justiça na terra” de Hamurábi, onde muita mais a vingança e não a justiça era consumado.

O que alimenta o sentimento de segurança é sem dúvida a certeza de que haverá a responsabilização. E adolescentes em conflito com a lei o são. O ECA apresenta um título inteiro que vai da apuração do ato infracional até a execução das medidas aplicadas para cada caso. Todo o rito processual assemelha-se ao adotado para os adultos. A diferença mais uma vez está nos princípios que devem nortear, na prática, a aplicação das medidas impostas aos adolescentes. Incompletude institucional, ou compromisso solidário de todas as políticas públicas na emancipação do adolescente; a capacidade de cumprimento da medida e a condição de pessoa em desenvolvimento são alguns dos princípios.

Certamente o debate deveria se dar em torno da efetividade no cumprimento das medidas, algumas de responsabilidade do Estado e outras do município. Espaços físicos pouco adequados, profissionais com postura prisional, queixas de agressões físicas e verbais, ausência de atividades interessantes e emancipatórias, técnicos em quantidades reduzidas, demora aplicação da medida, disparidades salariais dos funcionários, dificuldades de articulação e envolvimento com as famílias, ausência de complementariedade entre as políticas públicas, ausência de proposta terapêutica quando há o envolvimento com substâncias psicoativas são algumas das situações que comprometem o sucesso de qualquer de medida. E modificá-las requer investimentos em médio o longo prazo.

Do ponto de vista econômico a proposta do encarcerando de meninos e meninas a partir de 16 anos que cometem crimes é vantajoso. Como o percentual desses novos sentenciados seria reduzido, não haveria necessidade de construir mais penitenciárias. Bastaria colocá-los nas celas do atual sistema carcerário brasileiro. Isso os tornaria invisíveis e a sociedade talvez poderia dormir em paz, sentindo-se segura.

Refletir a PEC 171/93 não deve colocar a população em campos opostos, como inimigos. O debate pode construir novas estratégias para o enfrentamento à questão, sendo o importante não demonizar o adolescente. Tratá-lo como o “mal” que precisa ser banido. As ações voltadas para esse seguimento devem levar em conta o seu tempo histórico e do quanto precisam para assimilar valores socialmente instituídos, maturação física e emocional, sentimentos e comportamentos reativos e rebeldes, a batalha entre o ser e o dever ser, aspirações e representações dos adultos, insegurança, desejos, fraquezas, sonhos e pesadelos, tudo acontecendo em um lapso temporal como o bater de asas de uma borboleta.

Por fim, não deixa de ser assustador pensar em como é possível que a conduta de um pequeno grupo dentro de um seguimento populacional, que não é mais criança e não é adulto, pode fazer com que uma sociedade inteira e o Estado percam o controle a ponto de tomar decisões tão extremadas como o seu aprisionamento? Parece que somos incompetentes.

Nesse passo, nos próximos vinte e poucos anos estaremos novamente discutindo a redução da maioridade penal, desta vez pensando em como enviar os mais novos criminosos, os de 14,12, quiçá 10 anos para penitenciária. Afinal os de 16 estarão votando, serão motoristas habilitados, funcionários públicos, maridos e esposas, juízes, delegados, promotores de justiça, vereadores, prefeitos, deputados e terão aprendido hoje como se enfrenta e responde a questões sociais profundas.



[1]       Assistente Social, Analista Executivo em exercício na Promotoria da Infância e Juventude da Madre Deus, em São Luís , Presidente do Conselho Regional de Serviço Social CRESS/MA. ana.margarida@ig.com.br

[2]      Estagiária de Serviço Social – UFMA