O processo transexualizador configura-se como um conjunto de estratégias e procedimentos assistenciais que tem como objetivo realizar modificações corporais do sexo, em função de um sentimento de desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero (masculino ou feminino), em atendimento às legislações e pareceres médicos. Em resumo, compreende a mudança do corpo, desde o tratamento hormonal até as cirurgias de redesignação sexual (mudança de sexo, tanto de homem para mulher quanto de mulher para homem) e complementares. O Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde foi instituído por meio da Portaria nº 1.707/GM/MS, de 18 de agosto de 2008 e da Portaria nº 457/SAS/MS, de 19 de agosto de 2008.
E o que a/o Assistente Social tem a ver com isso?
Em entrevista realizada com a assistente social do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HUUFMA/ EBSERH) – Unidade Materno Infantil, Luciana Castelo Branco Soares, você vai entender que a/o Assistente Social tem muito a ver com isso. Confira entrevista abaixo:
1. Quais são as políticas públicas existentes direcionadas ao processo transexualizador?
Luciana Soares: Entendendo que Políticas Públicas são ações e programas que devem ser executadas pelo Estado a fim de garantir e operacionalizar direitos previstos na Constituição Federal e em outras leis, onde esses devem ser assegurados com o olhar da igualdade sem distinção de qualquer natureza e da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, partimos da premissa que essas politicas públicas devem estar a serviço dos indivíduos, desse modo, os transgêneros deveriam entrar compulsoriamente nesse processo de garantia de acesso a todas.
Mas em um país que possui elevado índice de assassinatos de pessoas da comunidade LGBTQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Queer – sigla utilizada no meio acadêmico, na qual queer, palavra proveniente do inglês, é utilizada para designar pessoas que não seguem o padrão da heterossexualidade ou do binarismo de gênero) e que ainda apresenta como principal traço característico a intolerância inserida numa cultura totalmente patriarcal, machista, misógina e heterocisnormativa, esse direito lhes são tolhidos. Logo, o simples fato de sair de casa os coloca em risco. Assim, diante de tal dinâmica, percebemos o quanto ainda temos que avançar para que esse acesso e inclusão ocorram de maneira real e efetiva.
Relacionadas diretamente ao processo transexualizador, a política de saúde entra como executora dos procedimentos relacionados à questão da “adequação” corporal, através da hormonioterapia, das cirurgias de redesignação sexual e complementares. O Ministério da Saúde (MS), através da Portaria 8.203 de 19 de novembro de 2013, regulamenta o processo transexualizador no SUS através da redefinição e ampliação do que fora regulamentado anteriormente na Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008.
Essa portaria define critérios a serem atendidos para que uma unidade de saúde possa habilitar-se para a realização dos procedimentos tanto a nível ambulatorial quanto hospitalar, como equipe mínima, capacidade instalada.
2. Como a política de atendimento do Sistema Único de Saúde para a população TRANS é desenvolvida no Maranhão?
Luciana Soares: No Estado do Maranhão o serviço de saúde direcionado a essa população encontra-se em processo de habilitação junto ao Ministério da Saúde solicitada pelo Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, entretanto, a assistência a nível ambulatorial vem sendo realizada desde 2016. Ressalto que por se tratar de um serviço em processo de implantação, o mesmo vem sendo estruturado através da montagem da equipe assistencial e adequação de um espaço físico para esse atendimento.
Hoje a equipe que presta atendimento é composta por profissionais do Serviço Social, Enfermagem, Ginecologia/Sexologia, Psicologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Mastologia, Urologia, Cirurgia e Cirurgia Plástica, sendo que as cirurgias configuram os processos de alterações corporais permanentes que só poderão ser realizadas após o mínimo de dois anos de acompanhamento ambulatorial, como preconiza a portaria do MS.
Considerando que a Portaria determina que o acesso ao serviço deva ocorrer por meio da Atenção Básica, percebemos a fragilidade da rede, visto que, em nosso Estado essa população não encontra esse atendimento.
3. Que particularidades ou quais demandas específicas são apresentadas pela população TRANS no cotidiano interventivo?
Luciana Soares: As demandas vão desde a dificuldade do acesso aos serviços de saúde e outras políticas públicas, dificuldades em exercer o papel social antes e depois do processo transexualizador, incluindo o direito ao uso do nome social, um mercado de trabalho excludente, até questões relacionadas discriminações em espaços públicos, a exemplo da utilização de banheiros.
São trazidas questões familiares oriundas da não “aceitação” da identidade de gênero a qual se sentem pertencentes.
Quanto às demandas específicas das queixas físicas, reivindicam o reconhecimento do direito legal do gênero que se identificam, através da necessidade da hormonioterapia e cirurgias de redesignação sexual.
O mal estar corporal, anteriormente classificado como disforia, classificado pelo CID11 como incongruência de gênero, como queixa principal, constitui-se uma demanda emocional importante, que interfere na qualidade de vida do individuo, como um todo.
4. Quais seriam as finalidades da atuação do Serviço Social na equipe multidisciplinar no Processo Transexualizador?
Luciana Soares: A/ O Assistente Social inserido nesse processo traz do seu histórico de intervenção o caráter de uma prática com olhar ampliado, onde o usuário é visto de maneira integral, reconhecendo sua dinâmica, o contexto ao qual ele está inserido e todos os condicionantes de seu processo de transformação individual e social apresentado antes durante e após o processo transexualizador.
Na perspectiva do combate a um modelo patologizador da transexualidade e levando em consideração que no campo da saúde o processo saúde/doença é reforçado com a busca de uma cura, a transexualidade, que traz em si especificidades que perpassam esses protocolos existentes, a/o Assistente Social busca a quebra do pragmatismo existente dentro da saúde pública, trabalhando junto aos demais atores envolvidos na assistência a compreensão de que aquele usuário que chega ao serviço possui direitos estabelecidos como cidadão ou cidadã, independente da sua identidade de gênero e deverá ter seu acesso garantido, respeitando as suas particularidades como Transexual.
A Resolução do CFESS Nº 845, de 26 de fevereiro de 2018, que dispõe sobre atuação profissional do/a assistente social em relação ao processo transexualizador, norteia as prerrogativas da profissão, orientando essa prática.
Não podemos deixar de mencionar que esse trabalho de informar que esse acesso é um direito, também deve ser realizado com os usuários, fomentando discussões sobre politicas de garantia de direitos, incentivando seu protagonismo, constitui-se assim uma das atividades do profissional de Serviço Social.
Então nesse processo de trabalho da/o Assistente Social, a/o usuária/o é atendida/o na sua integralidade enquanto sujeito de direito e segundo dimensão técnico-operativa, teórico-metodológico e ético-político da profissão.
5. Que estratégias podemos desenvolver para uma ampliação deste debate dentro categoria?
Luciana Soares: Buscando a literatura, podemos perceber que existem poucos trabalhos científicos realizados pela categoria sobre a transexualidade, a questão de gênero é mais trabalhada na perspectiva do binarismo homem/mulher, acredito que fomentar essas discursões nos espaços acadêmicos e profissionais, formaria e capacitaria Assistentes Sociais mais atentas/os a essas questões para a prática, e também possibilitariam novos espaços de pesquisa e atuação, a realização de reuniões ampliadas para discussão do nosso papel dentro desse processo se constituiria uma ferramenta de construção de conhecimentos.
No HUUFMA, por ser um hospital escola e possuir esse espaço de atuação, os residentes e estagiários tem a oportunidade de refletir sobre essas questões, vivenciando experiências que trazem certas inquietações e espero que essas sejam um combustível para realização de trabalhos, a exemplo da Assistente Social Bruna Barbosa Araújo que apresentou um belíssimo trabalho de conclusão da residência, tendo como tema “TRANSEXUALIDADE E SAÚDE: uma análise social do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde”.
6. Para você, como podemos assegurar o reconhecimento da identidade de gênero e a diversidade de expressão no conjunto dos processos de trabalho do/a assistente social?
Luciana Soares: Na perspectiva do direito mesmo, realizando atividades educativas nos espaços que atuamos, disseminando as legislações, principalmente a referente ao uso do nome social e as possíveis sansões pelo descumprimento da mesma, capilarizando a cultura do respeito a essa diversidade nos espaços da prática. A adequação dos instrumentais de trabalho institucionais, inclusão dos quesitos orientação sexual e identidade de gênero, e o entendimento dos novos formatos de famílias focando nessas novas perspectivas.
7. Qual a importância de relacionar o Código de Ética Profissional na intervenção durante o Processo Transexualizador?
O Código de Ética deve ser documento norteador de todas as ações da categoria, independente do público, permitindo assim, que possamos contribuir para a promoção de espaços garantidores e reprodutores de direitos. A transexualidade possui demandas específicas, no tocante a violações de direitos e papel social que historicamente é reproduzido pela sociedade, carregados de juízos de valores, preconceitos e discriminações, ferindo o indivíduo nas diversas dimensões (familiar, social, comunitário e perante o Estado), não respeitando as diversidades. Propiciar a defesa intransigente dos direitos humanos, possibilitar a autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais são prerrogativas essenciais na área de atuação, respeitando informações colhidas, preservando assim o Sigilo profissional.
O código nos permite através das ações fomentar reflexões críticas sobre os padrões de gênero estabelecidos pela sociedade, transformando os espaços de prática em locais que respeitam as diversidades.
A literatura busca se adequar as essas “novas” percepções do individuo quando ocorrem mudanças na nomenclatura nos textos como no código a substituição do termo “opção sexual” por “orientação sexual” e inclusão da “identidade de gênero”.
Sobre a entrevistada: Luciana Castelo Branco Soares. Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Católica do Salvador-UCSAL e é Especialista em Saúde Publica pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER. Atua na Unidade Materno Infantil desde o ano de 2014 e esse ano apresentou a comunicação oral “Atendimento a Transgêneros no HUUFMA”, dentro da programação do 39º Encontro de Assistentes Sociais do Maranhão.
Assistente Social Luciana Soares (foto: arquivo pessoal)
Processo Transexualizador no HUUFMA
Atualmente, as cirurgias ainda não estão acontecendo no HUUFMA, portanto, a articulação com a rede de atenção e de encaminhamentos pós-cirurgias não estão desenhadas, esperar-se que após habilitação pelo Ministério da Saúde esse fluxo possa ser estabelecido.
Conselho Regional de Serviço Social do Maranhão / CRESS-MA
Gestão "Resistência e Luta" – 2017/2020